sexta-feira, 6 de abril de 2007

Escrevem-nos: António Vasco Salgado.

Lisboa, Nova Iorque, Polllini e Yunus

Voo Lisboa-Nova Iorque TP 778, 23 de Junho de 1983, partida de Lisboa ás 10:30, chegada a Nova Iorque 15:55, hora local.
Quando em 1983 me mudei para Nova Iorque, Lisboa era uma cidade pacata, capital de um país já acometido de uma preocupante depressão colectiva, que apesar do espartilho imposto pelo FMI, caminhava a passos largos em direcção ao abismo do descalabro económico-financeiro.
Na altura a TAP voava para o aeroporto John F. Kennedy. Por conselho dos meus amigos, decidi que minha entrada na cidade seria triunfal. Assim sendo, decidi ir de táxi pedindo especificamente ao motorista que o fizesse pela ponte de Brooklin. Muito bonito.
Para quem vinha de Lisboa, era difícil não ficar extasiado com o que Nova Iorque oferecia. A cidade era assim uma espécie de loja de caramelos, para uma criança gulosa.
Tudo me maravilhava. As caixas registradoras dos supermercados com leitura dos produtos através dos códigos de barras, o Multibanco, que na altura já permitia fazer depósitos, os contractos de fornecimento de água, gás e electricidade que se faziam por telefone e eram accionado em 24 horas, o método e organização de trabalho em que todos com uma única lição dada no primeiro dia, aprendiam como e quando fazer e, por fim a cultura.
As paixões por definição são efémeras, a minha pela arte contemporânea americana, não me larga. Pela primeira vez na vida pude vibrar ao vivo, com obras de Pollock, Rothko, Stella, Judd, Rauschenberg, Wahrol e muitos outros. Depois era a música clássica no Carnegie Hall e no Lincoln Center, o Jazz no Village Vanguard, Fat Tuesday e Blue Note. Não sendo Paris, apesar de tudo em Nova Iorque, há muito e bom cinema, incluindo o que não segue o mainstream hollywoodesco.
Também na gastronomia, Nova Iorque é cidade de modas, a maior parte delas rapidamente descartáveis. Os restaurantes abrem e fecham em dois tempos, estes últimos geralmente na mais completa falência e nos cinco anos que lá vivi, assisti, a vagas sucessivas de modas culinárias. Entre elas, o tex-mex, felizmente já na sua fase de anunciada agonia, a thai e por último a vietnamita.
A propósito, se está a pensar montar um restaurante, saiba que Nova Iorque é talvez o melhor mercado do mundo, para compra de material de cozinha em segunda mão e que muito deste material está praticamente novo.
Foram os meus amigos Manuel e Minie, que me deram a conhecer pela primeira vez o Dean and DeLuca. Já na altura uma mercearia de luxo, localizada no Soho, num espaço bastante mais pequeno do que o actual, mas com algo que me maravilhava. Na secção de legumes, impecavelmente apresentados, passava como música ambiente, obras do mais puro barroco. Raras vezes os meus olhos e ouvidos foram confrontados em simultâneo com semelhante êxtase.
Em frente havia uma loja de sanduíches, com uma célebre de pão preto, salmão fumado, chalotas e maionese caseira e uma outra que vendia um bom café expresso, ao alucinante preço de 1 dólar, que deixam muito boas recordações. É preciso recordar que na altura, o dólar já se aproximava vertiginosamente do recorde máximo de 182 escudos.
O ícone da restauração era um chamado Le Cirque. Entrar não era difícil, bastava casaco e gravata, independentemente de se levar calçados os ténis. Nova-iorquino que se preze olha sempre em frente, nunca para baixo, o que conferiria uma imagem de timidez e de denunciante insegurança. Para sair já era outra história, sobretudo tendo em conta o parco salário auferido por um interno dos primeiros anos de Neurologia. A tentação foi grande mas resisti.
Mas Nova Iorque também mudou muito. Há vinte anos mesmo trabalhando num famoso Hospital Universitário, não havia Internet, apenas um equipamento muito primitivo e moroso, que permitia apenas a ligação á Universidade de Harvard. Impensável nos tempos que correm.
Apesar de ser uma cidade liberal, não ficou imune á vaga de histeria conservadora, que varrendo a América, quase resultou no afastamento de Clinton, quando este foi apanhado no affair Monica. Igualmente impensável na década de oitenta. Passe o exagero, qualquer nova iorquino, de nascimento ou simples residente, que se prezasse, era primariamente anti Ronald Reagen, na altura o expoente máximo dos conservadores americanos.
Finalmente, não havia nada que se assemelhasse á American cuisine, que tem talvez como sua expressão máxima, o trabalho do chefe Thomas Keller. Hoje em dia Nova Iorque tem alguns restaurantes topo de gama, o que não acontecia nos anos 80. Per Se, Le Bernardin e Jean George, são nomes que devem constar do roteiro de qualquer entendido.
Por obra e graça da Fundação Gulbenkian, e durante pouco mais de 24 horas, Lisboa foi Manhatan, a Avenida de Berna a Lincoln Center Plaza e o Grande Auditório o Avery Fisher Hall.
Primeiro foi Maurizio Pollini, não já, mas ainda uma lenda viva, porque feliz e activamente está entre nós. Pollini, tal como Richter o fazia, encaixa-se no piano, criando um elemento sonoro único, de funcionamento perfeito.
Depois, Muhammad Yunus, economista, prémio Nobel da Paz em 2006, criador do Brannen Bank e inventor do micro crédito, um conceito financeiro revolucionário que contribuiu, para a retirar da mais completa miséria 8 milhões de habitantes de um dos países mais pobres do mundo, como é o Bangla Desh. Yunus é um Grande Santo Homem, de uma generosidade e simplicidade desarmantes, que nos faz a todos e não só ao Dr. Rui Vilar, sentir muito pequenos e insignificantes.
Quando morrer não quero ir para o reino dos céus, prefiro o reino de Muhammad Yunus, a não ser que alguém me prove que Yunus é a personificação de Deus na Terra.
Como julgo que o reino de Yunus não está ao alcance de qualquer um, se lá chegar vou desde logo exigir as obras completas para piano de Beethoven, Schumann e Chopin, interpretadas por Pollini ou Richter e uma garrafa de Puligny-Montrachet, Domaine Leroy 1976, que tenciono beber gota-a-gota até á eternidade.

Esta crónica já vai longa e se não propuser algo de comestível, arrisco-me a que dificilmente seja publicada. Aqui vai.
Espetada de atum de Eric Ripert. Restaurante Le Bernardin, em Nova Iorque. Uma interpretação pessoal.
Num espeto de madeira com cerca de 8 com de comprimento coloque alternadamente, pedaços de atum cru, manga e pepino, em iguais quantidades. A forma dos mesmos, cubos, paralelepípedos ou cilindros achatados é indiferente e ao gosto de cada um. Tempere com uma vinagrette de citrinos – ¾ de azeite e ¼ de mistura em partes iguais de laranja, limão e toranja. Sirva ligeiramente fresca.
Dicas. 1) A melhor forma para obter o tipo de corte desejado para o atum, é enquanto este está ainda quase congelado, 2) Da mesma forma e no que diz respeito á manga, corte primeiro grandes pedaços, vá cortando depois em porções mais pequenas até obter a forma desejada. Só retire a casca no fim do processo, senão acaba com um inestético mas sempre aproveitável puré de manga.
3) O segredo do sucesso desta entrada, depende do número total de pedaços que conseguir espetar no seu espeto.